O mundo é mesmo um lugar surpreendente, estranho e indeterminado. Para o bem e para o mal. Por exemplo, semana passada comecei a ler “O espião que saiu do frio” de John Le Carré. Parei mais ou menos na página 60. Ele começa com Leamas esperando um agente seu retornar da Berlim Oriental. Ele está nove horas atrasado. Um outro espião americano (Leamas era inglês) tenta convencê-lo ir dormir, mas ele permanece. De repente fica sabendo que a maioria dos seus agentes foram mortos por um contra-espião oriental, cujo nome esqueci. De vivo só esse que está por atravessar a fronteira. Tensão. Um carro chega, é a mulher do tal espião, mas nada dele. Ela Consegue atravessar. Leamas conversa com a mulher. Ele deve estar vindo, mas está com alguns problemas. Quando ele volta o espião americano que o acompanhava foi dormir. De repente chega o espião desejado, de bicicleta. Consegue atravessar a fronteira, mas aí chega o tal contra-espião assassino e atira nesta antes dele conseguir fugir. Fim do primeiro capítulo. Meio cinematográfico esse finalzinho, mas confesso ter gostado. Tinha vida, vários pequenos detalhes acontecendo ao mesmo tempo. Depois dessas dez primeiras páginas, porém, o enredo torna-se esquemático. O autor pensa: agora Leamas começa a decair e ele decai. Ele torna-se amargo e rude, mas não nos é apresentado nenhum exemplo de sua amargura ou rudeza, simplesmente somos informados que ele agora é alguém amargo. Depois o autor pensa: agora ele vai trabalhar numa biblioteca e conhece uma garota e ele escreve umas cinco páginas em que acontece apenas isso. E no momento em que a garota aparece você tem certeza que ela irá para a cama com Leamas (por que outro motivo ela apareceria na história?). E depois ele conhece um agente oriental, e mais nada. Depois parei. E qual a acusação que se faz a um livro assim? Artificialidade.
A vida não é assim, com esses conceitos gerais de amargura, com essas conquistas fáceis de funcionárias da biblioteca. A vida e uma boa história tem milhares de detalhezinhos.
Aí comecei a ler “Arquipélago Gulag” de Soljenítsin. Que diferença! Eis a vida real penetrando em todas as páginas. “Claro, trata-se de uma história real” você diz. O começo do livro: “No presente livro não há personagens imaginárias, nem acontecimentos imaginários. Pessoas e lugares são mencionados pelos seus próprios nomes. Quando os mencionarmos por iniciais, isso deve-se a considerações de ordem pessoal. Se não forem referidos de maneira alguma, isso se deve simplesmente ao fato de a memória humana não ter retido os seus nomes. Mas tudo se passou exatamente assim”. E a dedicatória é essa: “Dedico esse livro a todos aqueles a quem a vida não bastou para o relatar. Que eles me perdoem por não ter visto tudo, não ter recordado tudo, não ter percebido tudo”. Sim, são histórias reais, mas é preciso saber olhar para a realidade para contar uma boa história, e Soljenítsin consegue te deixar interessado por uma matéria fecal repugnante, revoltante. Chamam a atenção os detalhes. Por exemplo, ele narra como alguns guardas prenderam alguns dos pacientes de um hospital e, sem demonstrar necas de qualquer tipo de consideração, iniciam a revista quebrando frascos de remédio e abrindo os curativos dos pacientes. Os detalhes estão por toda parte e se de início eles nos prende e chama a atenção, quando se chega ao meio do livro já achamos todos aqueles absurdos um tanto comuns. Nossa mente funciona de um jeito que ela tende a normalizar o que está a nossa volta. É preciso um constante exercício para percebemos esses detalhes. É preciso deixá-los sempre nos surpreender. Soljenítsin percebe a selvageria da realidade, por isso escreve tão bem, por isso nos comove página após página, por isso ele toma cuidado com os detalhes, por isso ele atinge o essencial. O terceiro capítulo deste livro inicia-se assim: “Se os intelectuais de Tchekhov, sempre fazendo conjecturas sobre o que seria a vida dentro de vinte, trinta ou quarenta anos, tivessem respondido que na Rússia se torturariam os acusados durante a instrução do processo, que se lhes apertaria o crânio com um anel de ferro(1), que se submergiria uma pessoa num banho de ácidos (2), que se ataria um homem nu para o expor às formigas e aos percevejos, que se lhe introduziria uma baioneta em brasa pelo orifício anal (“a marca secreta”), que se lhe comprimiriam lentamente com uma bota os órgão sexuais e que, como tratamento mais suaves, se torturaria alguém durante uma semana, sem o deixar dormir, nem lhe dar de beber, espancando-o até deixar-lhe o corpo em carne viva – nem uma só dessas peças teria chegado até o fim e todos os seus heróis teriam ido parar no manicômio
(1) Como aconteceu ao Doutor S., segundo testemunho de A. P. K...va.
(2) Como aconteceu a H. S. T...e.”
(1) Como aconteceu ao Doutor S., segundo testemunho de A. P. K...va.
(2) Como aconteceu a H. S. T...e.”
Pois é, o mundo é absolutamente incerto e, como li nas costas um livro do Pychon, ele é dividido entre os apocalípticos e os ingênuos. O que será de nós daqui vinte, trinta, quarenta anos? Não ouso arriscar. O futebol e a vida é mesmo uma caixinha de surpresas. Para o bem e para o mal.
Um pequeno apêndice: lembrei-me de um artigo que li há tempos no “Mídia sem máscara”. Seu autor falava que há anos não lia mais ficção pois esta nunca poderia competir com a realidade. Quando li isto pensei “idiota”. Ele contava, para ilustrar, o seguinte exemplo: Em determinado ano houve uma grande fome na China de Mao. Como ele não podia por a culpa em si mesmo, a pôs nos pássaros, que estariam comendo os grãos necessários. Por isso deu à população a seguinte missão: perseguir os pássaros armados de paus e panelas e, avançando para cima deles não os deixar pousarem até que caíssem, mortos de cansado. O plano foi um sucesso e milhões dos tais pássaros comedores de grãos foram mortos. O único porém é que, obviamente, não foram apenas eles que morreram, mas todos os tipos de pássaros, inclusive aqueles que comiam larvas, insetos e outras pragas. O resultado foi cinco anos de colheitas piores ainda, de fomes mais negras e mortes mais numerosas. Que escritor teria uma imaginação tão poderosa para inventar tais fatos? Nenhum, é preciso admitir. Quanto mais leio o Arquipélago, mais este articulista me parece sensato.
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