domingo, 3 de agosto de 2008

“Houve, contudo, um conflito interno ainda mais significante, embora menos freqüentemente explícito, no pensamento medieval, e no platonismo antes disto, que, semelhantemente, se deve a associações do princípio de plenitude com certos outros elementos de um grupo aceito de assunções fundamentais. Foi um conflito entre duas concepções irreconciliáveis de bem. O bem final para o homem, como quase todos os filósofos ocidentais por mais de um milênio concordaram, consistia num modo de aproximação ou assimilação com a natureza divina, seja esse modo definido como uma imitação, uma contemplação ou uma absorção. A doutrina dos atributos divinos foi também, e ainda mais significativamente, uma teoria da natureza dos valores últimos, e a concepção de Deus era ao mesmo tempo a definição do objetivo da vida humana; o Ser Absoluto, completamente diferente de qualquer criatura da natureza, era ainda o primum exemplar omnium. Mas o Deus na qual os homens deveriam achar sua própria satisfação era, como tem sido apontado, não um, mas dois deuses. Ele era a Idéia do Bem, mas também era a Idéia da Bondade; e embora o segundo atributo foi nominalmente deduzido do primeiro através da dialética, as duas noções não poderiam ser mais antitéticas. Um era a apoteose da unidade, da auto-suficiência e da quietude, a outra da diversidade, da auto-transcedência e da fecundidade. Um era, nas palavras de Peter Ramus, um Deus omnis laboris, actionis, confectionis no modo fugiens sed fastidiens et despiciens; o outro era o Deus do Timeu e da teoria da emanação. Um era o objetivo da ‘subida’, do processo de ascendência na qual a alma finita, virando-se de todas as coisas criadas, tomava seu caminho de volta para a imutável Perfeição em que somente nela poder-se-ia descansar. O outro Deus era a fonte e a energia informe pela qual o ser fluía através de todos os níveis de possibilidades, até atingir os mais baixos níveis. As dificuldades meramente lógicas de reconciliar esses dois tipos de perfeição já foram sugeridas; mas dificuldades lógicas a respeito dos objetos últimos do pensamento, não atrapalhavam muito a mente medieval. A noção de coincidentia oppositorum, do encontro dos extremos no Absoluto, foi uma parte essencial de aproximadamente toda teologia medieval e do Neoplatonismo, o que Dean Inge delicadamente chamou de “a fluidez e interpenetração dos conceitos no mundo espiritual”, ou, numa linguagem mais rasteira, a tolerância e mesmo a necessidade de se autocontradizer quando se fala de Deus, era um princípio comumente bastante reconhecido, embora os benefícios disto não eram estendidos usualmente aos oponentes teológicos. O leve constrangimento que a aplicação de tal princípio deixa na mente podia ser, e nos teólogos escolásticos normalmente eram, aliviadas pela explicação de que os termos aparentemente contraditórios eram usados em um sensus eminentior – ou seja, que eles não possuíam os seus significados habituais, nem nenhum outro significado que uma mente humana poderia entender. Mas o esforço interno no pensamento medieval que aqui nos preocupa não era simplesmente uma discrepância entre duas idéias especulativas defendidas pelas mesmas mentes, era também uma discrepância entre dois ideais práticos. Pode ser fácil afirmar da natureza divina predicados metafísicos que nos são aparentemente incompatíveis; mas era impossível reconciliar na prática humana noções de valores que nos parecem incompatíveis. Não houve meios para que o vôo do Muitos para o Um, da perfeição definida completamente em termos de contraste com o mundo criado, pudesse ser efetivamente harmonizada com a imitação de uma divindade que se delicia na diversidade e se manifesta na emanação dos Muitos fora do Um. Um programa pedia o afastamento de toda “união com as criaturas” e culminava na contemplação estática da Essência Divina indivisível; o outro, se tivesse sido formulado, teria convocado os homens a participarem, numa medida finita, na criação passiva de Deus, a colaborarem conscientemente no processo pelo qual a diversidade das coisas, a completude do universo, é executada. Teria encontrado a visão beatífica na desinteressada alegria de participar do esplendor da criação ou de curiosamente delinear os detalhes desta infinita variedade, teria posto a vida ativa acima da contemplativa; e teria, talvez, concebido a atividade do artista criativo, aquele que ama, imita e aumenta a “variedade ordenada” do mundo sensível, como o modo de vida humana mais semelhante ao divino. “

Arthur Lovejoy, The Great Chain of Being, p. 82-84.

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