Segue o texto prometido. Divirtam-se. Nunca li o tal James Wood, mas a discussão sobre a obra dele é bem interessante. O original está aqui: http://www.thesmartset.com/article/article08190802.aspx
A Verdade Dói
A novela está mudando. James Wood nem tanto
Por Morgan Méis
How Fiction Works não é, na verdade, sobre como a ficção funciona
[1]. Ser obcecado com os mecanismos das palavras e sentenças, ver a literatura como um sistema fechado e com regras internas, é ser um formalista, e James Wood, apesar de toda sua formalidade, não é um formalista. Ele admite isso. No prefácio de
How Fiction Works, “quando falo sobre o estilo indireto livre, estou falando, na verdade, sobre ponto de vista e quando estou falando sobre ponto de vista, estou falando, na verdade, de personagem e quando estou falando de personagem, estou falando, na verdade, sobre o real, que é o centro de minhas pesquisas.” Para James Wood, ficção é sobre o mundo, não sobre si mesma.
Wood chama seu livro de
How Fiction Works por dois motivos. O primeiro é que ele é um filho de uma puta pretensioso, um dos melhores no seu campo, e está preparado para fazer afirmações sérias. Ele está cheio de confiança e tem toda razão. Ninguém mais está escrevendo sobre literatura com algo que lembra a sua energia. A segunda razão é que ele realmente está usando a palavra “Works” num sentido secundário do termo. Ele não está usando a palavra no sentido de “operar” ou “funcionar”. Ele não está seriamente interessado na técnica. Ao invés disso, ele está usando “Works” no sentido de “Querida, esse vestido realmente ficou bem em você” ou “Eu não sabia o que fazer com essa poltrona, mas ela realmente fica bem nesta varanda”. ”Works” Aqui significa algo como “combinar” ou “competente”. A maior pista – além daquilo que Woods escreve em seu livro – de que este é o real significado de “Works” é o título na capa. Não é
How Fiction Works, mas
How Fiction Works. Já aí, com esta ênfase, Wood está nos dizendo que ele está procurando por outra coisa que a mera técnica. Ele está atrás de metafísica, de um argumento sobre a natureza da realidade e sobre o significado do que é próprio do humano
[2]. Isto é com o que Wood realmente deseja e a literatura está num local especial para entregar tais bens. Para colocar isso de maneira mais direta, literatura tem uma relação especial com a verdade.
O argumento histórico não será encontrado em
How Fiction Works mas ele esboça a idéia básica em vários outros lugares. Pensando em como a novela se formou, Wood foca na idéia que a experiência humana mudou profundamente em algum lugar no meio do século XIX. Ele crê que esta mudança deve ser entendida em termos da transformação dos modos religiosos de pensar para a auto-concepção secular da mente moderna. Em sua introdução para o
The Broken Estate, Wood escreve:
“Estará claro que creio que distinções entre crença literária e crença religiosa são importantes, e é porque acredito nesta importância que sou atraído por escritores que lutam contra essas distinções. Por volta do meio do século XIX, estas distinções se tornaram muito difícil de manter, e temos vivido na sombra dessa confusão desde então. Isto foi quando o velho estado ruiu. Eu definiria o velho estado como a suposição que religião foi um conjunto de afirmações divinas e com pretensão de verdade, e o Evangelho como as narrativas onde o sobrenatural é narrado; ficção pode ser sobrenatural também, mas ficção será sempre ficcional, ela não tem a mesma pretensão de verdade que a narrativa evangélica.“
Esta é uma história que, por agora, é familiar para a maioria de nós. A especificidade de Wood é o quão ele é sensível às implicações dessa transformação, o quão profundamente ele é capaz de entender os custos e as oportunidades de uma mudança histórica. Wood tem visto, tão profundamente como ninguém, que o colapso da concepção especificamente religiosa de verdade tornou possível para a novela ser sobre a verdade de um jeito novo e diferente. A própria verdade mudou quando Deus morreu.
Sempre que um crítico começa a cantar sobre a verdade é fácil ficar desconfiado. Talvez eles não estão dizendo nada com substância. Eles estão usando a palavra “verdade” como um gambito desesperado, batendo com ela nas cabeças de nós todos. Algumas vezes é exatamente isso o que os críticos estão fazendo. Mas não Wood. Ele está dizendo algo mais substancial.
A novela, ele diz, está na posição certa para tomar vantagem das mudanças na consciência humana que ocorreram no meio do século XIX. A novela está na posição para nos mostrar o que nós nos tornamos depois que a experiência foi transformada. Ela nos deu uma imagem de nós mesmos como sujeitos individuais finitos e complicados apenas vagamente consciente do porquê nós fazemos as coisas grandes, trágicas e simplesmente mundanas que fazemos.
Isto é o que Wood quer dizer por “realismo”. O debate burro sobre o realismo geralmente contrapõe a escrita que aponta por uma correspondência direta entre a palavra escrita e os fatos do mundo real com a escrita em que todo tipo de coisa fantástica e impossível acontece. Mas não é disso que Wood está falando. Wood deseja que a literatura seja “real” na maneira que ela retrata a estrutura “real” e os sentimentos de ser um ser humano, de ter subjetividade. Este tipo de realismo é livre para retratar eventos absurdos e impossíveis a medida em que eles permanecem verdadeiros na tarefa de retratar como nós experimentamos o mundo. Os grandes mistérios do universo, para Wood, migraram do reino dos enigmas teológicos para os enigmas das motivações humanas e do auto-entendimento. O fato de que somos um quebra-cabeça para nós mesmos e para os outros é uma verdade. Revelar como este quebra-cabeça opera, sem tentar resolvê-lo, é a tarefa que apenas a ficção é capaz de completar. Levou algum tempo para a ficção se dar conta disto. Foi quando do surgimento dos termos e do modo que as nuança, a complicação, a coisa que é a alma humana, foi espelhada estruturalmente pela nuança e complicação inerentes da ficção ela mesma, especialmente em sua forma de novela.
Wood dá ao
Le Neveu de Rameau de Diderot a honra de ocupar um lugar no desenvolvimento histórico da ficção. Com o
Le Neveu de Rameau, somos apresentados a um personagem que não mais, como na literatura dos séculos anteriores, representa uma consciência unitária que pode facilmente ser compreendida. Ao invés disso, temos um personagem repleto de contradições internas e uma certa “incognoscibilidade” em connstrução.
Le Neveu de Rameau é escrito como um diálogo entre um sobrinho e um personagem nomeado “Diderot”. Através do curso do diálogo, Rameau se revela quase bestialmente instável, ressentido e ainda assim desejoso de receber um elogio honesto de seu tio músico, Rameau, e ao mesmo tempo extremamente cínico em relação ao mundo social que ele vê como um jogo. Wood, como Hegel antes dele e Lionel Trilling em seu clássico livro
Sincerity and Authenticity, vê uma forma de consciência emergindo da obra de Diderot que podemos distinguir como distintamente moderna. “Deste personagem”, Wood escreve, “flui muito do brilho e acuidade psicológica de Stendhal, Dostoievski, Hamsun, Conrad, Svevo, do
Invisible Man e
Wittgenstein’s Nephew de Ralph Ellison.
O realismo de
Le Neveu de Rameau é um realismo que retrata “como a vida é”. Realismo, para Wood, não é uma coisa direta. É tão curvo quanto a viga da humanidade. É, em alguns aspectos, misterioso e nunca será completamente distorcido. Por que fazemos o que fazemos? Nós simplesmente não sabemos bem o porquê. Certamente não sabemos tudo sobre isto
[3]. O projeto de modernidade, aos olhos de Wood, é revelar os contornos e o formato, o “sentimento” específico deste mistério essencial. Ele até mesmo pega emprestado um conceito do filósofo medieval Duns Scotus,
haecceitas, para explicar o que ele quer dizer. “Por
haecceitas quero dizer qualquer detalhe que puxa a abstração em sua direção e pareça matar esta abstração com um sopro de palpabilidade, qualquer detalhe que chama nossa atenção por sua concretude”.
A capacidade da novela moderna de transmitir um sentido de
haecceitas constitui um realismo verdadeiro. Isso é o “realmente real” de Wood. Algo muito finamente granulado para ser capturado numa categoria ou axioma, isto só pode ser capturado pela literatura por transmitir de maneira apropriada um tal realismo. E isto é porque Wood pode equivaler realismo e verdade. “Então vamos recolocar a sempre problemática palavra ‘realismo’ com a muito mais problemática palavra ‘verdade’... Uma vez que compreendemos o termo “realismo”, poderemos dizer que a “Metamofose” de Kafka ou a “fome” de Hamsun ou o “fim de jogo” de Beckett não são " representações de atividades tipicamente humanas, mas são, todavia, textos terrivelmente humanos.
Para Wood, é isso que a novela deveria ser. Verdade.
Contudo, apesar de toda confiança de Wood, ele ficou longamente incomodado por uma dúvida prolongada sobre a saúde e o bem-estar da novela. Esta dúvida vem à tona, por exemplo, quando Wood escreve sobre Saul Bellow, que Wood toma como um defensor do realismo real da novela. Wood escreve:
“Com o risco de soar apocalíptico, podemos dizer que Bellow estendeu o tempo de vida da novela. Ele suspendeu a execução do realismo, puxou seu pescoço da lâmina da pós-modernidade; e ele fez isto ao ressuscitar o realismo com a técnica modernista. “
Bellow certamente é um brilhante escritor, exatamente pelas razões apontadas por Wood, mas que Deus me amaldiçoe se esse sentimento não soa como a última resistência, uma ação reacionária se opondo ao inevitável.
Agora, como todos os teóricos do declínio, Wood pode dizer simplesmente “Certamente, reconheço que a novela está num ponto difícil e que muito do trabalho sendo produzido não cai sob a categoria de verdade que eu penso que a novela deveria aspirar. Mas o que eu posso fazer? Fatos são fatos. Algumas vezes o mundo não segue do modo que gostaríamos que ele seguisse.” Usando essa lógica, Wood ainda poderia aplicar este critério normativo enquanto reconhece que este é um critério que cai, cada vez mais, em ouvidos moucos, tanto entre os leitores como entre os escritores.
Mas há ainda outra possibilidade enterrada em algum lugar da análise de Wood que forneceria um ponto de partida normativo inteiramente diferente. Escrevendo sobre Tchekhov, Wood diz:
“No mundo de Tcheckov, nossa vidas interiores passam em sua própria velocidade. Elas não são bem calendariáveis. Elas vivem em seu próprio almanaque, e em suas histórias a vida interior livre bate contra a vida exterior como dois sistemas de tempo diferentes, como os calendários julianos e gregorianos. Isto era o que Tcheckov queria dizer por ‘vida’. Esta foi a sua revolução”.
Num sentido mais amplo, esta foi a revolução que afetou toda literatura no fim da era moderna para Wood, e isto torna o tipo de escrita Tcheckoviana uma escrita que captura a verdade da “vida”. A questão é se é assim que a vida é ou tem que ser ou deveria ser.
Mesmo Lionel Trilling, que concorda com Wood sobre a importância de
Le neveu de Rameau de Diderot ao retratar uma forma de subjetividade nova e pós-religiosa, não cai na armadilha do fim da história. O livro de Trilling,
Sincerity and Authenticity, avança sob a afirmação de que “agora e então, é possível observar a vida moral no processo de auto-revisão”. A implicação implícita é que a vida moral ou o “realmente real” de Wood é sempre um processo de auto-revisão. Portanto, deve-se assumir que a relação especial da novela com a verdade é, por definição, uma relação temporária, sempre sujeita a mudanças na relação entre o homem e o mundo.
Quando isto se tornar patente, Wood terá de permitir que a possibilidade dessa “vivicidade”, a coisa que ele deseja que a literatura revele, esteja sempre mudando. De fato, ele é obrigado a considerar esta possibilidade porque parte do todo de seu argumento é que a vida só pode tornar aquilo que se tornou com a morte de Deus. Então por que insistir que a literatura deveria se manter trabalhando para revelar uma manifestação histórica em particular se os homens não estão experimentando o mundo mais dessa maneira?
A questão então se torna como lidar com o “realismo histérico” (um termo que Wood cunhou num ensaio agora famoso sobre escritores contemporâneos que tendem a uma história com abundância de eventos miraculosos e entrelaçados – uma narrativa como uma transversal cortando todo o globo. Pense, por exemplo, nas primeiras páginas de
Midnight’s Children de Rushdie). Esta forma de literatura pós-moderna não diz nada de verdadeiro sobre nossa condição atual? Wood pensa que não. Ele considera tal escrita falsa, que estamos sendo enganados ao pensar que Rushdie, Wallace, DeLillo ou Pychon estão nos dizendo algo real sobre nós. Esses escritores estão apaixonados por seus próprios sinos e assobios mas eles apenas arranham a superfície da experiência real. Eles substituem a atividade delirante de um maníaco pelo retrato substancial de como as pessoas agem e sentem quando se envolvem na questão essencial de entrar em contato com o mundo e com todos os temas humanos em seu interior. Em suma, Wood pensa que os realistas histéricos não estão nos dizendo nada de interessante sobre nós – eles estão simplesmente fugindo dos mistérios.
Porém, os realistas histéricos estão, no mínimo, nos dizendo que vivemos mais numa era de subjetividade histérica que numa era de calendários imprecisos. E uma simples olhada no mundo a nossa volta nos revelará que eles têm razão.
Ao esboçar os contornos das formas da consciência humana que está emergindo atualmente e são delineadas pelo que podemos chamar de globalização, é difícil não achar que Wood prefere simplesmente fingir que não é assim. Ele não está interessado em descobrir o que os realistas histéricos estão tentado nos dizer sobre nós mesmos. Ele está apenas interessados em envergonhá-los levando-os de volta ao coração dos séculos XIX e XX, de volta ao reino das complicadas formas de subjetividade que Tcheckov ou Bellow podem ter explorados.Ele não está interessado na idéia de que os tempos estão, mais uma vez, mudando. Suspeito, porém, que esta falta de interesse demonstra não um real comprometimento com um fim da história, da quasi hegeliana história da consciência humana, mas uma simples inclinação de alguém que ama prescrever o que os outros devem amar. James Wood é um prisioneiro do que ele entende por certo.
Talvez seja injusto pedir a Wood que abandone esta prisão, uma vez que ele cresce quando confinado. E mesmo que sua crítica se prove fútil para resistir às transformações da história, não há nenhuma vergonha em defender algo bom pelo máximo de tempo que conseguir.
Mas se o Sr. Wood desejar trocar suas prescrições pela arte de descrever, um exemplo útil pode ser encontrado no tratado de Edmund Wilson sobre o que ele chamou de literatura imaginativa de 1870 até 1930, o livro
Axel’s Castle.
Escrevendo sobre essa literatura de um modo que soa bem woodsiano, Wilson diz,
“Estes livros revelam novas descobertas artísticas, metafísicas, psicológicas; eles mapeiam os labirintos da consciência humana de um modo nunca visto antes, eles nos fazem conceber o mundo de uma nova maneira.” Mas rapidamente Wilson deixa isto de lado. Ele reconhece que estes mapas estão envelhecendo porque os labirintos da consciência humana são eles mesmos sujeitos a transformações e devem ser re-mapeados novamente e novamente. “Portanto, creio que o tempo passou para esses escritores, que dominaram largamente o mundo literário na década de 20-30, e embora devemos continuar a admirá-los como mestres, eles não nos servirão mais como guias... E quem, daqui em diante, se contentar em habitar um canto, ainda que decorado com alguns objetos de sua própria escolha, na casa fechada de um desses escritores, acabará por se tornar consciente de falta de ventilação”. Brilhante como Wood é em revelar a profundidade da literatura dos últimos 150 anos, eu acho, lendo seu trabalho sobre nós, agora, hoje, que estou começando a me tornar consciente de uma falta de ventilação. Seria interessante ver Wood saindo e se permitisse respirar um pouquinho.
[1] No original: “How Fiction Works isn't actually about how fiction works” Como no começo do artigo o autor discute o real significado do título em inglês e como tal livro, até onde sei, não possui tradução para o português, achei por bem deixar o nome no original.
[2] “Human ‘self’” no original.
[3] No original: “We certainly don't know it all the way down”