quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Bujis Kelon, capítulo I

Em Bujis Kelon ninguém morre. Quer dizer, ninguém morre à nossa maneira. Ao invés disso as pessoas se tornam uma espécie de zumbis, animais em decomposição andando por aí com pedaços de carnes pútridas caindo no chão, deixando uma gosminha de lesma por onde passam. A consciência, no entanto, continua trabalhando normalmente. Esses zumbis são bastante nojentos e fedidos. Concordam comigo os “vivos” daquele mundo. Para evitar a convivência com esses seres monstruosos, convencionou-se enviá-los todos a Jomki, uma região onde eles ficaram agrupados até as décadas de 20 e 30 do século XIX, antes da expansão capitalista, quando o governo de Ruosi Esodi resolveu invadir aquela região e expulsar os zumbis aos mares. Um erro trágico.
Os zumbis perderam a guerra e deixaram-se levar, boiando, pela maré. Apesar de não poderem propriamente morrer, eles têm uma fortíssima necessidade psicológica de comer e respirar. Há histórias de zumbis que não sabiam nadar e vivem desde então um agonizante afogamento eterno. Sorte um pouco melhor tiveram aqueles que boiaram perdidos na imensidão do mar por décadas. Quase duzentos anos depois dos acontecimentos aqui narrados, encontra-se ainda quem esteve a deriva por todo este tempo. Os zumbis se alimentam de coisas em putrefação e cocôs, o que os tornam mais nojentos, não só pelo bafo, mas porque, desajeitados que são, deixam cair aquelas porqueiras nas roupas, nas barbas (depois de algum tempo, mesmo as mulheres zumbis são barbadas) e cabelos (a cabeleira dos zumbis é enorme, muitas vezes ultrapassando a altura do morto-vivo). Imaginem-se conversando com alguém com a boca suja de cocô. Então.
Nos primeiros anos que se seguiram a expulsão dos zumbis, tudo normal. Entre 1826 e 1839, Fursai du Magajhaun deu pela primeira vez a volta ao mundo à procura de novas terras e não encontrou nada além de pequenas ilhas desabitadas, a maior delas com dez quilômetros quadrados. Encontra-se no diário de bordo dessas viagens as primeiras descrições da assombrosa paisagem, comum desde então: cabeças de zumbis boiando na água, observando os barcos passarem, gritando com ressentimento e ódio contra os vivos insensíveis e insensatos.
Em 1847 Fursai du Magajhaun e sua tripulação embarcaram em sua segunda viagem marítima pelo mundo e nunca mais voltaram. Em 1849 um navio atracou no porto de Nastin e dois meses depois um outro no porto de Jonbia, ambos com marcas de tiros de canhão, ambos contando a mesma história: foram abalroados em alto mar por navios carregados de zumbis e, por sorte, não foram lançados ao mar. A partir de então tais histórias tornam-se comuns e várias embarcações nunca retornaram a um porto.
Em 1860 uma esquadra de navios de zumbis atacou o porto de Oshuen e roubou várias embarcações. Isso se tornou prática comum a partir de então e em 1917 todos os países já haviam desistido de suas esquadras.
O que ocorreu foi o seguinte: assim que o primeiro grupo de zumbis encontrou uma ilha, lá se instalou e começou a construir navios. Depois de feitas algumas embarcações, eles partiram em alto mar e recolhiam os pobres zumbis que por lá boiavam. Eles voltavam a ilha, faziam mais navios, voltavam ao mar, traziam mais zumbis e assim o número de zumbis na ilha crescia exponencialmente. Exploraram um pouco a região marítima, ocuparam todas as ilhas conhecidas, mas a madeira ia ficando cada vez mais escassa. Seria preciso agora conservar as árvores ainda existentes e esperarem as mudas crescerem novamente, o que demoraria cerca de trinta anos. Eles decidiram que esperar por aquele tempo todo era um absurdo, havia zumbis esperando por eles. Logo surgiu a idéia de roubarem os navios dos vivos. Como entre os mortos havia todo tipo de profissional, não foi difícil a criação de canhões e outras armadilhas para a tomada dos navios.
Por volta de 1925 os zumbis foram vistos no continente, recolhendo madeira. Depois de algumas escaramuças os zumbis prometeram deixar a terra dos vivos em paz, desde que o governo dos vivos se comprometesse na fabricação perpétua de navios que seriam doados aos mortos-vivos. E assim vem sendo feito até os dias de hoje.

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